nos estudos culturais

por Ana Bigotte Vieira

Os Cultural Studies, campo de estudos necessariamente interdisciplinar, nasceu com o ímpeto de analisar criticamente a cultura com vista à transformação social e política do mundo.

Onde, quando e por que vias se deu a recepção dos Cultural Studies em Portugal? Onde podemos encontrar bibliografia sobre este assunto? Colocámos esta pergunta por e-mail a Luís Trindade (Instituto de História Contemporânea, FCSH e Birkbeck University), José Neves (Instituto de História Contemporânea, UNL- FCSH), Manuela Ribeiro Sanches (Centro de Estudos Comparatistas, FLUL), Maria João Brilhante (Centro de Estudos de Teatro, FLUL), Fátima Sá (Centro de Estudos de História Contemporânea -ISCTE), Maria Teresa Cruz (Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, UNL-FCSH) e Idalina Conde (CIES- ISCTE)[1].

Interessava-nos perceber qual a recepção dos Cultural Studies simultaneamente como enquanto projecto de transformação do mundo e metodologia e não apenas como metodologia. Parecia-nos que isto nos poderia ajudar a entender onde se poderia inserir um programa interdisciplinar e crítico (tanto na pluralidade de metodologias quanto na escolha dos objectos) como é o dos Estudos de Performance e que a escassa tradição nos primeiros poderia ajudar explicar a quase ausência dos segundos.

As respostas – muitas delas imediatas – permitiram-nos perceber a opinião difusa sobre os moldes em que esta recepção (não) foi feita, uma vez que parecem não existir publicações de estudos precisos sobre esta questão. O historiador Luís Trindade expõe essa opinião generalizada de um modo exemplar:

Eu próprio me pergunto: houve recepção dos Cultural Studies em Portugal? Não falo de indivíduos em vários sítios a ler Raymond Williams e Stuart Hall e trabalharem sobre as suas ideias. Falo de uma corrente que se identifique, e se faca identificar, com Estudos Culturais. Pelo menos nunca houve uma expressão institucional disso. Por um lado, não há departamentos de Cultural Studies e nos sítios onde o tipo de questões levantadas pela disciplina (departamentos de estudos literários, ciências da comunicação, história e história de arte) foram discutidos, esta manteve-se episódica e individual, ou pouco mais. Pelo menos é esta a minha impressão. (…) A falta de sistematização, e a dependência de todo o debate intelectual e académico em Portugal de esforços e iniciativas individuais, por outro lado, cria situações curiosas, como a tradução e publicação do The Uses of Literacy: Aspects of Working Class Life do Richard Hoggart, logo em 1973, pela Presença (As utilizações da cultura). Pode haver outros exemplos, mas eu desconheço. Ao contrário da historia cultural dos Annales – Chartier e outros – ou de Bourdieu, que teve um programa de publicações e seguidores que por sua vez orientarem teses e foram criando ‘escola’.

Departamentos e Centros de Investigação afiliados aos Estudos Culturais

No entanto, se a falta de departamentos de Estudos Culturais ou de uma corrente que se reclame como tal parece ser um facto, vários são os departamentos e as pessoas que em Portugal se interessaram sobre cultura e pelos seus estudos.

Entre estes, destaca-se o papel ímpar do departamento de Ciências da Educação da Universidade Nova de Lisboa (com um mestrado em Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias e um ramo de licenciatura em Comunicação, Cultura e Artes) e do CECL – Centro de Estudos de Comunicações e Linguagens em cuja Revista de Comunicação e Linguagens nº 28, “Tendências da Cultura Contemporânea” (2001) se publicou um texto de Stuart Hall intitulado “O legado teórico dos Cultural Studies” e um texto de Bill Schwartz intitulado “Onde estão os Cultural Studies?”.

Ainda numa abordagem da cultura e do cultural vinda de departamentos de Comunicação assinala-se o trabalho do  CECC– Centro de Comunicação e Cultura da Universidade Católica,  do CICANT, na Universidade Lusófona e do LABCOM na Universidade da Beira Interior.

Em “O legado teórico dos Cultural Studies”, muito embora de uma forma já retrospectiva como, aliás, o título indica, Stuart Hall traça de forma exemplar a história do campo “de modo a poder pensar-se e consultar-se o presente e o Futuro dos Cultural Studies” (Hall, 2001: 65), o que, num país em que não houve um acolhimento explícito dos Cultural Studies, parece ser indicador da recepção não já do seu ímpeto inicial mas de um seu legado – dos seus sucedâneos e possíveis abordagens instrumentais. Estes, embora úteis e válidos por si só, são diferentes do projecto inicial do campo enquanto abordagem crítica. Stuart Hall, no texto em questão, sem se referir explicitamente ao panorama português, alerta repetidamente para os perigos de uma tal dissociação.

É de referir igualmente o trabalho isolado de professores em departamentos de Literatura e Cultura Inglesa (FCSH-UNL; FLUL, FP)[2], Francesa (FLUL; FCSH), Estudos Artísticos (FLUL), e História Moderna e Contemporânea, no ISCTE, onde, em 2008, foi realizada a conferência A Economia moral de E. P. Thompson  (org. Fátima Sá e José Neves), a propósito da qual se lançou o livro A economia moral da multidão de E. P. Thompson. (2008)

Igualmente importantes são certos trabalhos de antropologia cultural e social realizados no âmbito do CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia, os interdisciplinares e informais Seminários de Cultura de Massas (org. Luís Trindade, Tiago Baptista e José Neves) que têm esporadicamente vindo a ser realizados na UNL-FCSH, desde 2005/2006 bem como o trabalho do Grupo de Investigação de Poder, Cultura e Ideias do Instituto de História Contemporânea da FCSH que recentemente organizou o seminário Para uma História Crítica da Cultura no Portugal Contemporâneo’ (org. José Neves e Tiago Baptista). Neste evento tratou-se de “reunir investigadores cujas pesquisas têm contrariado” uma tendência para falar de cultura “separando o que será de âmbito português do que será de âmbito internacional ou global; e separando o que é designado como erudito do que é classificado como popular – ou também o alto do baixo, o moderno do tradicional, a inovação do património”, abrindo caminho a “futuras investigações que contribuam para uma história não apenas capaz de estudar a cultura mas também de questionar as fronteiras que delimitam o que é e o que não é cultura”.

Em Coimbra, para além de iniciativas pontuais e do empenho de alguns professores de Literaturas e Estudos Artísticos, destaca-se o trabalho do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, onde, em 2004, foi realizado o colóquio, Transformações estruturais do Campo Cultural Português (1900-1950) (org. António Pedro Pita e Luís Trindade) que procurou ser uma sistematização de contribuições de uma nova Sociologia da Cultura e de História Cultural, mas também dos Estudos Culturais, sobre este assunto; e de alguns trabalhos do Centro de Estudos Sociais, sob direcção de Boaventura de Sousa Santos.

Já no domínio de uma sociologia da cultura são de referir os trabalhos do Observatório das Actividades Culturais [3]., e no âmbito do CIES, de Idalina Conde e do seu grupo de investigação.

De destacar também, entre outros, o trabalho contínuo do blog Indústrias Culturais, de Rogério Santos.

Nos anos 90, importa salientar o trabalho desenvolvido pela Associação Abril em Maio cujo objectivo central de actividade, de acordo com a sua carta de princípios, consista em apoiar a “distribuição alternativa de produções culturais, promovendo-as e divulgando-as” o que permitiria propiciar, por um lado, o “acesso colectivo a produções culturais e a sua apropriação crítica” e, por outro criaria “condições facilitadoras para a circulação de produções raras ou inexistentes no mercado”. De referir ainda a obra Títulos, acções, obrigações –  a cultura em Portugal 1974-1994 de Eduarda Dionísio, que continua a ser ainda hoje fundamental para o estudo das transformações pelas quais a sociedade portuguesa passou neste período.

Espalhados por departamentos de Estudos Portugueses e Espanhóis ou de Estudos Lusófonos, sobretudo em países Anglófonos, como a Inglaterra ou os EUA, onde há mais tradição dos estudos culturais, há igualmente várias pessoas a trabalhar nesta área. É disto exemplo o trabalho de Luís Trindade na Birkbeck University em Londres, de Kimberly DaCosta Holton na Rutgers University, e de Onésimo Teotónio de Almeida na Brown University, bem como de revistas como a Portuguese Cultural Studies http://www2.let.uu.nl/solis/PSC/P/ ou a Portuguese Literary and Cultural Studies da Darthmouth University http://www.plcs.umassd.edu/, Massachussetts. De notar igualmente o Center for Portuguese Studies da Universidade de Santa Barbara, Califórnia http://www.portcenter.ucsb.edu/publications.shtml .

Por último, observa-se pelas Universidades de todo o país a abertura recente de formações e cursos privilegiando as saídas profissionais no âmbito do mercado da cultura, muitas delas reivindicando-se dos objectos e temas dos Estudos Culturais. É importante ajudar a diferenciar esta abordagem, cujos propósitos são essencialmente de organização e gestão, do projecto critico dos Estudos Culturais. Estudos de Gestão Cultural, mesmo que denominados agora de Estudos Culturais, têm muito pouco a ver, parece-nos, com os Estudos Culturais tais como estes foram pensados inicialmente. A fraca recepção do campo em Portugal leva à confusão, equivalência e/ou sobreposição destas designações.

Esta rubrica estará permanentemente em actualização pelo que se tiverem sugestões ou comentários podem faze-lo para baldiohabitado@gmail.com (dizendo no assunto a que texto se referem).

REFERÊNCIAS:

DIONÍSIO, Eduarda, 1993, Títulos, acções, obrigações –  cultura em Portugal 1974-1994, Lisboa: Salamandra.

HALL, Stuart, 2001, “O legado teórico dos Cultural Studies”, Revista de Comunicações e Linguagens, nº 28, Tendências da Cultura Contemporânea.

HOGGART, Richard, 1973, As Utilizações da Cultura – aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos. Lisboa: Editorial Presença.

MORRIS, Gay, 2009, “Dance Studies/ Cultural Studies”, Dance Research Journal, Vol.41, Number 1, (Summer).

THOMPSON, E. P., 2008, A Economia Moral da Multidão na Inglaterra do Século XVIII, Lisboa: Antígona Editores.

2004, Transformações Estruturais do Campo Cultural Português, actas do encontro publicadas pelo CEIS20.

[1] Todos os Professores e Investigadores com quem falámos pertencem a Universidades de Lisboa, o que, sabemos, circunscreve o âmbito da nossa interrogação.

[2] Como é o caso de A Biblioteca das Utopias, um projecto de Fátima Vieira (Universidade do Porto) cujas publicações, editadas pelas edições Quasi, foram resultado de diálogos cruzados com Centros de Investigação de todo o país, ou de, entre vários outros, Iolanda Ramos (na UNL-FSCH) com o seu livro O Poder do Pó. O pensamento social e político de Jonh Ruskin (1819-1900), Lisboa, FCG, 2002.

[3] Veja-se a esse respeito a interessante recensão ao livro Sociologia da Cultura de Maria de Lourdes Lima dos Santos publicada no blog Indústrias Culturais.

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